Greve, de L. A. Freire



João Gomes decidiu entrar em greve naquela manhã quente de maio. Olhou o noticiário no dia anterior e não teve dúvidas: não iria mais trabalhar ou mesmo sair de casa, nem compraria coisa alguma. Sim, até que tudo melhorasse. Sabendo assim que as coisas não mudariam assim da noite pro dia, resolveu dar um ponto final naquilo tudo.
A greve duraria eternidade.
Os dias se passaram e ninguém sentiu falta de João. Seu patrão chegou a ligar uma ou duas vezes, mas sem resposta (pois ele mesmo havia cortado o fio do telefone) desistiu do empregado e contratou outro sujeito. Nem mesmo os filhos, três, todos já adultos e morando em outras cidades deram a falta do pai. A ex-mulher, não reclamou a pensão atrasada e nem sua mãe, à aquela altura em um asilo no centro, imaginou apenas que João estivesse ocupado demais para ligar.
Tudo isto se dava porque João jamais avisou aos seus que entraria em greve a partir de tal dia, ou mesmo mandou um e-mail com a pauta de suas reivindicações junto a quem fosse de direito. Queria apenas desestabilizar o mundo com sua ausência. E ainda que achasse, se fosse possível, que a falta de propaganda não geraria o resultado almejado, tinha a firme consciência de que jamais furaria a greve. Nem se pudesse!
Era apenas um pequeno cartaz preso à janela aberta do apartamento que comunicava os sentimentos revolucionários de João com o mundo exterior. "Estou em greve", dizia a placa. Não demorou muito, alguns dias e outras noites apenas, para que determinados indivíduos notassem a greve do sujeito, decidindo assim visitá-lo. Foi assim que dois homens, encapuzados, talvez por serem personalidades públicas que primavam pelo sigilo, entraram no apartamento de João pela pequena janela na calada da noite e assim entenderam tudo. Entenderam muito rápido, diga-se de passagem, pois não demoraram para sair apressados, carregando mais e mais objetos pelo cubículo que era a janela da sala-de-estar do anfitrião.
É possível que João os tivesse mandado anunciar aos jornais sua relevante paralisação, mas eles não o fizeram. A única opção foi tornar sua manifestação mais intensa. Mais de dez dias já haviam passado desde que João entrara em greve, quando Seu Pedro, o porteiro, já desconfiado de algo, seja pelas correspondências acumuladas na caixa de correio ou as inúmeras tentativas de falar-lhe pelo interfone frustradas, que o ta homem decidiu subir até o apartamento do velho conhecido.
Ao chegar sentiu um cheiro estranho e ruim. Era provável que João Gomes estivesse a queimar o lixo como protesto, já que nunca mais depositara no contêiner do prédio. Pedro bateu uma ou duas vezes, sem resposta, abriu a porta do apartamento e deparou-se com a terrível manifestação.
O corpo de João, semelhante a um pêndulo preso ao teto, coberto de moscas e a exalar um cheiro podre olhava fixo o homem em frente à porta. Pedro, assustado diante da imagem sinistra desviou o olhar para as margens do recém descoberto cadáver. Toda a bagunça, gavetas e móveis revirados, todo o tipo de coisa espalhada e Pedro começou a olhar tudo aquilo de modo muito interessante. Algumas camisas boas que julgou caberem nele, uma escrivaninha que ficaria perfeita no quarto do filho, alguns discos caros e livros que poderia revender, aquela linda geladeira que seria um excelente presente de casamento para a patroa, e por fim, aquele apartamento tão espaçoso, que com um ano de condomínio pago pelo finado, daria um ótimo lugar para guardar alguns entulhos do prédio, ou mesmo para passar uns dias ele e a família, para variar do barraco que desfrutavam na periferia.
Os dois homens encapuzados, seu Pedro, os vizinhos de João que muito se alegraram com o novo espaço para guardar coisas e a família distante que nunca reclamou o ocorrido, jamais perceberam os detalhes deixados pelo nosso grevista-anfitrião. Depois de pegarem o corpo em putrefação, envolverem-no em um saco plástico preto e o deixarem repousar dentro do pequeno quarto de empregada, pouco deram importância ao livro aberto e grifado a poucos metros dali, nem mesmo a transcrição deixada num pequeno cartão, presa nas mãos gélidas e mortas de João.

"Por mim se vai à cidade dolente,
Por mim se vai à eterna dor ,
Por mim se vai à perdida gente.
Justiça moveu o meu alto criador,
Que me fez com o divino poder,
O saber supremo e o primeiro amor.
Antes de mim coisa alguma foi criada
Exceto coisas eternas, e eterna eu duro.
Deixai toda esperança, vós que entrais!"
*


* Passagem da obra "A Divina Comédia". Trata-se, na perspectiva de Dante, da inscrição encontrada nos portais do Inferno.

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