Análise de "O sacrifício do cervo sagrado" (2018)






Construir um clima de mistério em tempos tão racionalistas como os nossos não é uma tarefa fácil. Nossa sede cartesiana por explicações 'lógicas' a tudo, mesmo na ficção, é cada vez mais presente e tem conduzido inúmeras produções cinematográficas de modo a que tudo seja explicado nos seus pormenores. Por um lado, vemos uma baixa produção de filmes com essa linguagem e, em casos de filmes de suspense/terror/mistério que por vezes apropriaram-se disto, agora recusam-no, privilegiando apenas o visceral, isto é, o sangue, a violência, sempre brutal e explícita.

A cena de abertura do filme: um super close de uma cirurgia cardíaca real.


Não é isto que o diretor de "O sacrifício do cervo sagrado", o grego Yorgos Lanthimos, faz nesta película, pelo contrário, parte na contramão da maioria dos filmes do gênero. O filme conta a história do cardiologista Steve Murphy (Colin Farrell) e seu relacionamento estranhamente paternal com o jovem Martin (Barry Keoghan), filho de um ex-paciente que morreu durante uma cirurgia ministrada pelo médico. A narrativa apresenta a introdução de Martin no seio da família Murphy. A recepção do jovem simpático e aparentemente problemático pela mãe e também médica Anna (Nicole Kidman) e os dois filhos do casal Kim (Raffey Cassidy) e Bob (Sunny Suljic), desde o início descortinam uma potencialidade conflituosa onde a tensão gerada a partir das consequências deste intrigante relacionamento, nos fazem perguntar a todo momento quais seriam as reais motivações de ambas as partes. Aqui o mistério é colocado às vistas do espectador quando uma misteriosa doença acomete o filho caçula de Steve, Bob, onde a partir deste caos familiar uma conduta impessoal, enigmática e vingativa é personificada na pessoa de Martin.

O encontro de Martin com a família Murphy.


Lanthimos faz aqui uma recriação do mito de Ifigênia, de Eurípedes, para os tempos contemporâneos. Ifigênia, filha de Agamemnon,  foi sacrificada pelo pai a Ártemis como punição por este ter matado um cervo sagrado. Note-se aqui, o uso de recriação ao invés de releitura, justamente porque o diretor nos faz crer que não apenas trouxe a temática do mito grego para os EUA do séc. XXI (que não tem nada a ver com a quase-franquia Percy Jackson), mas sim alcança o cerne do discurso mitológico, de modo que o filme parece ser uma tentativa de recriar uma narrativa que antecede a própria narrativa de Eurípedes. Deste modo, a construção do poeta grego do século V a. C. torna-se apenas uma alegoria e/ou paráfrase em relação ao filme de 2018.

Seria o desespero frente aquilo que não se pode compreender?

Com uma fotografia incrível, o filme parece sinalizar a impotência e a pequenez dos personagens diante do horror que assola a família. A excelente trilha-sonora contribui perfeitamente para o estabelecimento do clima mistério e mesmo o suspense em cenas de tensão, com uma beleza particular, que chama atenção pela simplicidade. Sobre as atuações: sem comentários. Ainda que muitos críticos acentuem a chamada "não-interpretação" dos atores exigida por Lanthimos, neste filme ela mostra-se mais que suficiente, com um destaque para o pequeno Sunny Suljic e o antagonista Barry Keoghan.

Assim, "O sacrifício do cervo sagrado" traz como temas centrais a responsabilidade e a reparação, onde o protagonista vê-se em um dilema emocional e moral, onde a própria lógica (e porque não a Ciência?) é encarada apenas como espectadora dos eventos que se sucedem, onde tem, no máximo, uma ação de resposta impotente frente a outras forças maiores e soberanas. 

Ficha técnica
O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer), direção de Yorgos Lanthimos, roteiro de Yorgos Lanthimos e Efthymis Filippou, elenco principal: Nicole Kidman, Colin Farrell e Barry Keoghan, 121 min.
Frase síntese
"Às vezes você parece ingênuo, mas não pode ser porque você é um homem da Ciência. Não pode ser um idiota,mas se eu tivesse te conhecido agora questionaria todo o seu discernimento. [...] Você entendeu? É tudo uma metáfora. O meu exemplo é uma metáfora, quer dizer, é simbólico".
Nota 4/5 (Recomendo)

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